Tuesday, June 05, 2012

O menino, o gorila e as ondas.

O menino, o gorila e as ondas.


Desde o inicio de suas lembranças infantis recordava que se contentava com pouco. Essas lembranças eram  bem poucas para dizer a verdade pois grande parte já tinha desbotado.    Com seus olhos ávidos e mente inquieta sugava tudo e todos para seu mundo.  Dentro de um corpo quieto e silencioso rugia uma imaginação encantadora.  Gostava da arte de passar desapercebido, quase que camuflado na paisagem cotidiana. 
No colégio escolhia sentar sempre atrás de Bruninho que de diminuto só tinha o apelido.  Com o dobro da altura de seus colegas Bruninho era o esconderijo perfeito para ele. Contorcionismos a parte, ele virava e desvirava para nao ser visto na sala de aula.     Seu pior pesadelo eram as perguntas, as malditas perguntas da sua professora de história.  Quando ouvia a palavra  tortura em reportagens na antiga televisão preta e branca  lembrava logo de seus pesadelos sombrios onde Bruninho tinha  poucos centímetros e a professora tal qual  Medusa o amaldiçoava apenas com o olhar, só lhe restando gritar por Perseu enquanto sua boca não virava pedra.  
            Na hora do recreio o plano era exatamente o oposto ao da sala de aula. Queira ficar o mais longe possível do boneco de Olinda chamado Bruninho.  Conhecido por seus dotes primatas Bruninho gostava de mostrar sua  sociabilidade contando piadas, chacotas e mentiras sobre os machos menores.  Por uma questão de amor próprio e instinto de preservação da espécie ninguém o contrariava.    Sua lei primeira e única desmentia  o dito popular e dizia: os opostos não se atraem.    Associar seu desafeto a um gorila era uma brincadeira secreta onde não poderia ser compartilhada nem mesmo com sua sombra pois os efeitos colaterais seriam catastroficos.   Mesmo os gorilas podem se comunicar com dezenas de sons diferentes enquanto Bruninho não passava dos cinco grunhidos parecidos, ele gostava de salientar tal ponto na brincadeira.
           Confiava em Zito, seu maior amigo  e acabou por contar segredos que nem deveriam ser pensados.  Sim, contou exatamente a sua brincadeira com o orangotango da classe. Aquele segredo cabeludo  tinha sido dividido com Zito e logo ele aprenderia que segredos derrubam amizades assim como as ondas derrubavam seus castelos. 

Continua...

Thursday, March 20, 2008

Alucinações

Antes tivesse escutado os sábios conselhos de seu velho que sempre dizia que artista não tinha valor nessa terra de doutor. Depois ele próprio aprenderia que ver um artista desiludido com a arte é pior que ter um coração traído. Hoje, á toda na vida, nem artista nem doutor seria mais. Tinha perdido a inspiração como alguém que perde um guarda-chuva fajuto num domingo nublado. Mesmo sabendo que não poderia mais passar, remendar nem rasgar as lembranças antigas guardadas no guarda roupa do passado não conseguia encarar o futuro. Já tinha corrido o mundo e não saíra do mesmo lugar, não dera nem um passo adiante da própria sombra. Companheiros de viagens e historias viu passar pelas janelas sujas dos ônibus, pelas luas crescentes dos quatro cantos do continente e pelos seus calos doloridos. Nem a sorte da morte o livraria de seus pensamentos.

Acuado por um mendigo foi perguntado se já tinha amado. Poderia gritar a plenos pulmões que já tinha se apaixonado loucamente mas amado? Não entendia muito bem aquela palavra. Agora a idéia de nunca ter amado pairava sobre seus pensamentos como uma tempestade sombria. Navegando pelos seus erros viu tormentas naufragar suas verdades, viu mentiras arrasar com sua alegrias e viu que toda sua vida se resumia a um grande equivoco sem começo, meio e fim.

Não por ser pessimista, mas por ter uma longa experiência no ramo de matrimônios, sua frase favorita era “Toda família tem um momento em que começa a apodrecer. de seu já falecido escritor favorito. E ele mesmo já se achava oco e coberto de fungos, fungos que lhe faziam o favor de devorar seu cérebro como um manjar dos Deuses.

Seu sangue cigano não o deixava esquecer que a qualquer momento os ventos do leste o expulsariam do seu atual paradeiro. Indiferente a todos e a tudo desapareceria em busca de novas paixões. Precisava das paixões para viver. Era um apaixonado que não sabia amar.

Chamou-lhe a atenção o reflexo de seu corpo no espelho visto de um prisma nunca antes visto. Era um total desconhecido e em aspecto nenhum lhe remetia a auto imagem criada ao longo de décadas vividas. As primeiras descobertas foram no plano físico, não sabia que a calvície já dominava grande parte de sua cabeça. Também descobriu que ele não era tão bem apessoado quanto sua mãe o convencera. Olhava com um certo desprezo para aquela pessoa que acabara de conhecer, bebendo no bar com amigos circunstanciais. Agora dissecava os sentimentos e aspirações daquele indivíduo geminado, simplesmente por não saber onde queria chegar todos seus caminhos sempre estavam errados. Ele gostava de repetir que era seu karma e nunca assumia a falta de determinação que lhe era tão peculiar. Sabia que nunca realizaria seu sonho maior de estudar cinema em Cuba. Não pela falta de dinheiro, capacidade ou tempo mas pela cômoda escolha de deixar aquilo apenas como um sonho, dormindo em seus pensamentos.

Em frações de segundo voltou ao próprio corpo e a conversa fiada com os amigos. Sentia-se estranho ainda, como se aquela experiência o tivesse fatigado emocionalmente. A cada nova dose, vinham novas lembranças e a sua fuga teria que ser de outra maneira a do álcool. Procurava disfarçar a euforia depois da volta ao banheiro, sabia que estava totalmente alterado depois de acabar com quase metade do seu salário em segundos. Mas a sensação de poder e superioridade era simplesmente inesquecível e fantástica para uma pessoa insegura e frágil como ele. Tinha certeza que poderia fazer qualquer coisa naquele estado febril. As dezenas de faces pareciam apenas bonecos para o todo poderoso que tinha se tornado, e com a missão maior de sentir o prazer total sem pensar em conseqüências. Sem perceber já estava sentado na mesa com um casal e conversando sobre os mais diversos assuntos. Falava sem parar quase sufocando com as próprias palavras. O homem, bem mais novo que a mulher, levantou e foi embora sem ao menos olhar para tras. De alguma maneira ele sabia que não tinha sido o motivo da briga. Agora aos poucos a loucura passava e conseguia perceber o olhar daquela mulher sentada a sua frente. Um olhar seco e frio que o levou para um lugar totalmente oposto de onde estava. Ela perguntava alguma coisa, ele via os lábios mas não conseguia entender o que ela queria.

Fechou os olhos e abaixou a cabeça, completamente sem noção de tempo voltou a olhar ao redor e as poucas pessoas que ainda restavam no bar. Ela ainda estava sentada a sua frente com os mesmos olhos gélidos e com alguma coisa que ele não sabia ao certo definir. Então ele perguntou quase sussurrando:

- Você já amou alguém?

­ - Por que?

- Me diz por favor...

- Já, já amei uma pessoa como nunca amei ninguém, como nunca amei nada nesse mundo, com nunca vou me amar.

Ele percebeu que os olhos já não eram tão opacos, tinham se preenchido de uma estranha força, não poderia ser chamado de brilho mas ele sabia que tinha tocado em algo complexo demais para a ocasião. Um silencio parava no ar, ele tentava a todo custo lembrar das coisas que tinha dito antes.

­- Eu concordo com você. – continuou ela.

- Concorda? Com o que? - Ela lhe passou um guardanapo onde estava escrito com letras tremulas que ele reconheceu serem suas: “A felicidade é somente uma droga barata necessária para o sacrifício que é viver.”

- Só que a ressaca dessa droga é pior do que todas as outras juntas.

- Mas se essa felicidade veio por amar alguém, então valeu a pena. Porque o pior castigo do mundo é não poder amar...

- Não é verdade, o pior castigo do mundo é amar alguém que lhe faz mal. Então é como um vício, mesmo sabendo que um dia aquele amor vai te matar você se entrega de corpo e alma, ou ao menos o que lhe resta da alma. Posso ficar com ele? – falou referindo-se ao bilhete.

Ele simplesmente balançou a cabeça concordando. Ela levantou dizendo que iria ao banheiro mas ele sabia que nunca mais a veria.

Saturday, December 30, 2006

"A Menina do Metrô" - Parte 1

A volta para casa era sempre rotineira e automática, não fazia uso das atividades cerebrais, somente da força motora de seus membros inferiores. Cinco minutos caminhando e recebendo panfletos até o metrô, dez minutos até a estação do Largo e mais dez minutos no micro ônibus e já estava na porta de casa. Passava o tempo em devaneios inúteis, lendo ou apreciando melodias. Essas melodias costumavam deixar pessoas mais perfumadas, mais afáveis. Já os livros o sugavam com tamanha animação que era certo perder a estação. Nada que mais alguns minutos no frescor dos vagões não reparassem.

Num dia qualquer foi surpreendido assim que adentrou o seu vagão. Sim, o vagão lhe pertencia por direito e usucapião, mas era gentilmente compartilhado com a turba. Nesta qualquer-feira seu destino foi transposto sem consentimento ou permissão pela menina do metrô. Sentiu-se minuciosamente apurado, incomodado, sorvido. Mas a sensação desconfortável durou apenas alguns segundos quando seus olhos se chocaram. O celeste anilado cintilou em sua direção fazendo perder as idéias. Já não sabia como se portar ou como agir. Não sabia se coçava a cabeça ou roia as unhas, não sabia como disfarçar o completo estado mentecapto que o tinha tomado. O sangue lhe subiu as ventas corando o semblante e tinha a certeza que todos estavam rindo do tresloucado ali parado. Nada mais importava, a não ser conseguir o frescor daquele olhar novamente. Já tinha perdido a noção do tempo e por pouco conseguiu amparar-se no executivo ao lado para não ceder a brusca parada do trem. O aviso sonoro do fechar das portas o trouxe de volta a realidade. Mas a imagem que teria naquele momento se repetiria por noites a fio. A menina do metrô estática num pedestal envolta por uma névoa mágica que intensificava a sensação da hipnose febril. Somente com a ardência do suor caido em seu olho conseguiu se desfazer daquela imagem e percebeu que ja tinha passado algumas estações do Largo. Por mais que tentasse lembrar onde a tal menina teria descido não conseguia. Não tinha o total discernimento da realidade e da fantasia naquele exato momento mas percebeu que algumas pessoas olhavam com um certo estranhamento para sua pessoa.

Neste dia adormeceu sem o costumeiro lanche noturno, pensava somente em estar no mesmo local na mesma hora para encontra-la novamente. Agora a menina do metrô invadia seus sonhos, sua ultima imagem lhe aparecia num misto de anjo e feiticeira, no exato momento que ela iria pronunciar alguma coisa ecoou a sirene das portas e acordando num susto percebeu que era apenas o despertador.

Depois de uma semana a vasculhar vagões já estava convencido que aquela menina não passava de uma alucinação, talvez devido ao trabalho excessivo. Apenas dos sonhos não conseguia escapar. Aos poucos voltava aos seus passatempos prediletos. Tinha excelente aptidão para os números mas deixava a desejar nas escolhas literárias. Gostava de livros sobre misticismo que acrescentavam quase nada a intelectualidade. Era na verdade um grande sonhador que acreditava no amor eterno e na bondade humana. Presa fácil para os amigos manipuladores e ladinos.


a continuar ...